Dois velhos conhecidos, de muitos anos, estão ali frente a
frente, em um encontro até formal, em um ambiente neutro, na verdade não há
quase nada no ambiente, pra ser mais específico o ambiente era o nada, mas mesmo
no nada havia uma mesa com duas cadeiras, estavam ali para um jogo que dedicaria
tempo e paciência, coisa que os dois tinham de sobra. Era uma partida de xadrez.
Agora se era um acerto de contas, uma negociação ou apenas mais uma dualidade
entre os dois não se sabe ao certo.
Lúcifer é o primeiro
a quebrar o silêncio:
- Creio que você irá escolher as peças brancas?!
Deus sorriu carinhosamente e disse:
- Bem se você não se lembra, eu criei o preto também! Assim
como criei você. Faço questão que você escolha...
- Certo, então vamos manter os estereótipos... Ficarei com as
peças pretas e você com as brancas... E tal assim como o “criador” você
começa...
- Como quiser...
- Como o “Senhor” é o criador de tudo, deve saber que no
xadrez existem precisamente 169.518.829.100.544 quatrilhões de maneiras de jogar os dez primeiros
lances.
- Assim como a vida, não acha?
Diz Deus dando o primeiro movimento em um peão.
-Você acredita realmente que você dá tantas escolhas assim
para aqueles que você criou?
- Não exatamente este número, pois eu dou algo infinito
chamado Livre Arbitro .
-Hahahaha, você e essa sua ideia de
livre arbitro... Você acha mesmo que um famigerado tem o mesmo livre arbitro de
um burguês??
- Tenho certeza, pois quantos famigerados moram em meu reino
e quantos burgueses moram sob sua jurisdição?
Você mesmo, minha criação, entre todas uma das primeiras, escolheu seu
próprio caminho.
- Então talvez porque o Senhor não saiba criar tão bem
assim... (Disse movendo seu cavalo negro pelo tabuleiro)
- Bem aí concordamos em discordar, pois a criação é tão
perfeita com este princípio básico do Livre arbitro que podem escolher entre me
amar ou não, mesmo não cabendo a mim mesmo esse livre arbitro, pois tudo e todos que criei não tenho a mesma reciprocidade, eu
vou amar, tenho que amar.
- Daí está o seu erro, esperar um amor que muitas das vezes
não é correspondido.
- Não espero fé, nem devoção, apenas que amem o que criei...
Amando as minhas criaturas já sinto que esse amor é direcionado a mim. ( movendo um bispo pelo tabuleiro)
-E você ainda acredita nesse amor deles? (com seu cavalo
matou um peão)
- Tenho que acreditar. (com a voz um pouco triste vê seu peão
saindo do tabuleiro)
- Esta triste por um peão? Não sabia que você era tão
competitivo.
- Saiba que pra mim um peão tem a mesma importância de um
Bispo, uma Rainha ou até mesmo um Rei.
- Lá vêm você com suas metáforas...
- Mas às vezes precisamos fazer sacrifícios... (com sua
rainha matou o cavalo)
- Ah, não vai me contar mais uma vez aquela historia do seu
filho???
- Não precisa, você estava lá...
- Hehe, verdade, ali vi o seu Peão
cair, o que foi aquilo um Xeque meu??
- Talvez, mas Xeque não termina jogo, pois no terceiro dia
ele se levantou e deixou de ser Peão para se tornar um Rei, Xeque-Mate meu?
- Será que um dia esse nosso jogo vai terminar?
- Espero que sim, mas tenho medo que não haja
vencedores...
- Só de você não ganhar já me sentiria um vitorioso.
- Justo, mas ainda tenho muitos peões (
disse sorrindo e com seu peão branco atacando um peão preto)
- Eu gosto muito desse jogo pois me
lembra muito você (disse movendo um peão)
-Como assim?!
-No Xadrez quantas
peças são sacrificadas para defender um Rei?? Quanto já
não se morreu em seu nome?
- Verdade, e esse grande equívoco é uma das coisas que mais
me incomoda... Usam muito meu nome de forma errônea, construindo impérios
religiosos, muitas das vezes proferindo mais ódio do que amor...
- Isso me diverte! Em alguns impérios desses falam mais em
meu nome do que no seu, hahaha, acho até que eu
poderia presidir uma comissão de direitos humanos, ou quem sabe entrar em um
próximo conclave ( com sua torre elimina um bispo)
- O grande engano deles é acharem que estão levando minhas
palavras, enquanto não levam minhas atitudes. Palavras o vento carrega, atitudes
ficam pra eternidade.
- Eternidade, talvez esse seja o nosso fardo...
- Ao contrario, essa é a benção... Nos
dá tempo de errar e nos redimir, e também de perdoar...
- Você e essa sua ideia de perdão... (movendo a torre que
atacou o bispo)
- Perdoar sim, mas também sendo justos, todos temos que pagar
um preço ( com o cavalo elimina a torre preta) E a
eternidade nos dá esse tempo de reparação.
- Olho por Olho, Dente por Dente?
- Não, ódio por amor.
-Bobagem, eles nunca vão entender esse seu jogo (avança com a
rainha)
- Não vejo como um jogo, mas é um ponto de vista
interessante.
- Tudo é um jogo, sempre há dualidade, bem contra o mal, fortes contra fracos, poder contra povo, nós dois
sentados aqui é a personificação perfeita disso.
- Pode até ser, mas quantas vezes já não vimos fortes
ajudarem fracos, povos derrubando poder, e muitas vezes um “bem servindo ao
“mal”. (movimenta seu rei)
- Acho seu argumento um pouco evasivo.
- Não espero que você entenda tudo mesmo. (avança com sua
torre)
- Pois devo admitir minhas duvidas em relação a você... como essa jogada mesmo (com a rainha elimina a torre
branca)
- Pois ainda há mistérios do Universo, coisas que não
precisamos entender e apenas sentir. (movimenta mais um peão)
- Tipo? (movimenta seu Rei)
- O amor. ( movimenta a rainha
branca eliminando a rainha negra)
- Não acredito nesse amor todo, você seria capaz de me amar
mesmo depois de tudo que já fiz? (com seu rei elimina a rainha branca)
- Não apenas seria, como deveria, seria a melhor forma do bem
vencer o mal. Xeque.
- Não sei se seria capaz de amar você.
- Uma pena! (movimenta seu cavalo branco)
-Por que? (movimenta mais um
peão)
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