domingo, 24 de novembro de 2013

Até o último peão

Dois velhos conhecidos, de muitos anos, estão ali frente a frente, em um encontro até formal, em um ambiente neutro, na verdade não há quase nada no ambiente, pra ser mais específico o ambiente era o nada, mas mesmo no nada havia uma mesa com duas cadeiras, estavam ali para um jogo que dedicaria tempo e paciência, coisa que os dois tinham de sobra. Era uma partida de xadrez. Agora se era um acerto de contas, uma negociação ou apenas mais uma dualidade entre os dois não se sabe ao certo.
  Lúcifer é o primeiro a quebrar o silêncio:
- Creio que você irá escolher as peças brancas?!
Deus sorriu carinhosamente e disse:
- Bem se você não se lembra, eu criei o preto também! Assim como criei você. Faço questão que você escolha...
- Certo, então vamos manter os estereótipos... Ficarei com as peças pretas e você com as brancas... E tal assim como o “criador” você começa...
- Como quiser...
- Como o “Senhor” é o criador de tudo, deve saber que no xadrez existem precisamente 169.518.829.100.544 quatrilhões de maneiras de jogar os dez primeiros lances.
- Assim como a vida, não acha?
Diz Deus dando o primeiro movimento em um peão.
-Você acredita realmente que você dá tantas escolhas assim para aqueles que você criou?
- Não exatamente este número, pois eu dou algo infinito chamado Livre Arbitro .
-Hahahaha, você e essa sua ideia de livre arbitro... Você acha mesmo que um famigerado tem o mesmo livre arbitro de um burguês??
- Tenho certeza, pois quantos famigerados moram em meu reino e quantos burgueses moram sob sua jurisdição?  Você mesmo, minha criação, entre todas uma das primeiras, escolheu seu próprio caminho.
- Então talvez porque o Senhor não saiba criar tão bem assim... (Disse movendo seu cavalo negro pelo tabuleiro)
- Bem aí concordamos em discordar, pois a criação é tão perfeita com este princípio básico do Livre arbitro que podem escolher entre me amar ou não, mesmo não cabendo a mim mesmo esse livre arbitro, pois tudo e todos que criei não tenho a mesma reciprocidade, eu vou amar, tenho que amar.
- Daí está o seu erro, esperar um amor que muitas das vezes não é correspondido.
- Não espero fé, nem devoção, apenas que amem o que criei... Amando as minhas criaturas já sinto que esse amor é direcionado a mim. ( movendo um bispo pelo tabuleiro)
-E você ainda acredita nesse amor deles? (com seu cavalo matou um peão)
- Tenho que acreditar. (com a voz um pouco triste vê seu peão saindo do tabuleiro)
- Esta triste por um peão? Não sabia que você era tão competitivo.
- Saiba que pra mim um peão tem a mesma importância de um Bispo, uma Rainha ou até mesmo um Rei.
- Lá vêm você com suas metáforas...
- Mas às vezes precisamos fazer sacrifícios... (com sua rainha matou o cavalo)
- Ah, não vai me contar mais uma vez aquela historia do seu filho???
- Não precisa, você estava lá...
- Hehe, verdade, ali vi o seu Peão cair, o que foi aquilo um Xeque meu??
- Talvez, mas Xeque não termina jogo, pois no terceiro dia ele se levantou e deixou de ser Peão para se tornar um Rei, Xeque-Mate meu?
- Será que um dia esse nosso jogo vai terminar?
- Espero que sim, mas tenho medo que não haja vencedores...
- Só de você não ganhar já me sentiria um vitorioso.
- Justo, mas ainda tenho muitos peões ( disse sorrindo e com seu peão branco atacando um peão preto)
- Eu gosto muito desse jogo pois me lembra muito você (disse movendo um peão)
-Como assim?!
 -No Xadrez quantas peças são sacrificadas para defender um Rei?? Quanto já não se morreu em seu nome?
- Verdade, e esse grande equívoco é uma das coisas que mais me incomoda... Usam muito meu nome de forma errônea, construindo impérios religiosos, muitas das vezes proferindo mais ódio do que amor...
- Isso me diverte! Em alguns impérios desses falam mais em meu nome do que no seu, hahaha, acho até que eu poderia presidir uma comissão de direitos humanos, ou quem sabe entrar em um próximo conclave ( com sua torre elimina um bispo)
- O grande engano deles é acharem que estão levando minhas palavras, enquanto não levam minhas atitudes. Palavras o vento carrega, atitudes ficam pra eternidade.
- Eternidade, talvez esse seja o nosso fardo...
- Ao contrario, essa é a benção... Nos dá tempo de errar e nos redimir, e também de perdoar...
- Você e essa sua ideia de perdão... (movendo a torre que atacou o bispo)
- Perdoar sim, mas também sendo justos, todos temos que pagar um preço ( com o cavalo elimina a torre preta) E a eternidade nos dá esse tempo de reparação.
- Olho por Olho, Dente por Dente?
- Não, ódio por amor.
-Bobagem, eles nunca vão entender esse seu jogo (avança com a rainha)
- Não vejo como um jogo, mas é um ponto de vista interessante.
- Tudo é um jogo, sempre há dualidade, bem contra o mal, fortes contra fracos, poder contra povo, nós dois sentados aqui é a personificação perfeita disso.
- Pode até ser, mas quantas vezes já não vimos fortes ajudarem fracos, povos derrubando poder, e muitas vezes um “bem servindo ao “mal”.  (movimenta seu rei)
- Acho seu argumento um pouco evasivo.
- Não espero que você entenda tudo mesmo. (avança com sua torre)
- Pois devo admitir minhas duvidas em relação a você... como essa jogada mesmo (com a rainha elimina a torre branca)
- Pois ainda há mistérios do Universo, coisas que não precisamos entender e apenas sentir. (movimenta mais um peão)
- Tipo? (movimenta seu Rei)
- O amor. ( movimenta a rainha branca eliminando a rainha negra)
- Não acredito nesse amor todo, você seria capaz de me amar mesmo depois de tudo que já fiz? (com seu rei elimina a rainha branca)
- Não apenas seria, como deveria, seria a melhor forma do bem vencer o mal. Xeque.
- Não sei se seria capaz de amar você.
- Uma pena! (movimenta seu cavalo branco)
-Por que? (movimenta mais um peão)

- Porque o amor sempre vence... (com seu peão cerca o Rei negro) Xeque-Mate.

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